uma viagem à Lídice Brasileira


Saímos de casa por volta das 10:10 da manhã com destino à Rodoviária Novo Rio, pegando um daqueles ônibus conduzidos por psicopatas homicidas, que correm feito loucos e ameaçam capotar a cada esquina. É claro que, olhando por outro ponto de vista, você também não pode ser flor-que-se-cheire, tendo uma forte tendência suicida ou, no mínimo, masoquista pra conseguir suportar e não ter um ataque cardíaco durante o caminho. Mas, de qualquer modo, um motorista veloz e com síndrome-de-piloto-de-fórmula-um veio bem a calhar. Conseguimos chegar bem antes das 11:00 na rodoviária, dando tempo pra pegar o ônibus de 11:05 (R$25,00 a passagem) pra Angra dos Reis. E ainda escolhemos a poltrona que queríamos!!
Já sabíamos que existem alguns ônibus da empresa Costa Verde que partem do Rio direto pra Lídice, mas são poucos e o próximo que sairia teria sua partida somente às 18:00 o que nos daria a inacreditável espera de 7 horas!! Nem pensar, que em 7 horas se vivia uma vida e se aproveita um feriado inteiro!! Decidimos, então, embarcar para Angra em um ônibus da mesma empresa e de lá pegaríamos um ônibus local com destino a Rio Claro, que passaria obrigatoriamente pelo meio de Lídice.
O caminho pra Angra começa na Av. Brasil, que não tem nada de bonita e atraente sendo, no máximo, curiosa. A Av. Brasil segue atravessando toda a cidade, vários bairros da zona norte, alguns da zona oeste, além de cidades da baixada, até desembocar na estrada que nos leva a Angra, a Rio-Santos. Essa estrada segue ainda por uma baixada durante algum tempo, mas logo já se pode avistar o mar e aí passamos a contornar as encostas, semperteando a água o tempo todo. As vistas são espetaculares, de um lado o verde do mar, com suas ilhas, barcos, povoados espremidos entre pedras e areia. Do outro lado o verde da mata atlântica fresca, úmida e abundante que sobe pelas encostas e paredões de rocha.
Conheço bem a estrada, tendo já passado incontáveis vezes por lá, seja dirigindo ou de ônibus. Mas posso entender perfeitamente e compartilhar do mesmo entusiasmo do meu Namorado Gringo que só tinha estado por aquelas bandas numa viagem onde ida e volta foram, lamentavelmente, feitas à noite, tendo ele mesmo como motorista, o que diminuiu qualquer possibilidade de conhecer as maravilhas do caminho. Dessa vez, no entanto, podemos apreciar cada curvinha. E não são poucas. Como fala a música sobre “as curvas da estrada de Santos”, a estrada vai acompanhando a tipografia do terreno e isso nos dá uma estrada com uma sinuosidade feminina, com subidinhas e descidinhas, além de túneis gelados. Ir de ônibus tem a vantagem de não precisar se preocupar com a estrada, só com a paisagem e você está expressivamente mais alto do que dentro de um carro, o que te dá uma visão mais ampla. Além disso não precisa parar o carro pra ir ao banheiro e nem prestar atenção no monte de lombadas eletrônicas ao longo da estrada, principalmente dentro dos povoados que vamos cortando. Pra quem vai de carro é importante ficar atento a isso, porque os limites são incrivelmente baixos, de 40 ou 50 km por hora e é muito fácil passar acima disso, ganhando uma multa daquelas por excesso de velocidade. Uma boa pra quem pode parar, é dar uma conferida nas barraquinhas de beira de estrada que vendem, entre outros doces, uma cocada de dar água na boca. Pra tomar nota.
Com 2 horas e 20 minutos de viagem, chegamos na rodoviária de Angra. Imediatamente fomos ao guichê da empresa Costa Verde e pudemos saber o horário em que um novo ônibus sairia em direção a Rio Claro, passando por Lídice. Não se compram passagens antecipadas para lá porque se trata, na verdade, de um ônibus urbano, desses comuns, com roleta e cobrador. A passagem custa R$4,80 e vem acompanhada, inteiramente grátis, de um pacote de emoções: curvas, subidas, decidas, precipícios e alta velocidade. Ignorando o que nos esperava, com uma fome de dar dó, saímos em busca de alguma coisa

Saimos da rodoviária por volta de 14:15 e, apesar do medo da morte que parecia iminente, o caminho de Angra a Lídice é simplesmente espetacular. Você é surpreendido, uma vez após outra, com paredões verticais e montanhas, que vão se descortinando ao fundo, de proporções enormes, dando a impressão de que sim, é possível ir até o céu sem morrer. Bem, isso era o que nós esperávamos, já que o nosso motorista sofria de uma síndrome parecida com a que acomete os motoristas de ônibus urbanos cariocas: direção totalmente ofensiva e desesperadora.

Os aproximadamente 45 km de Angra a Lídice são percorridos em cerca de uma hora, passando por vários túneis gelados e escuros, minados de goteiras que brotam das pedras. Na chegada fomos "recepcionados" pela primeira pousada do povoado (Pousada Águas Claras - 55 24 3334 1377), bem na entrada de Lídice. Apesar de ser um povoado de pouco menos de 5 mil habitantes (entre urbanos e rurais), conhecer toda a redondeza a pé é uma tarefa árdua, que toma tempo, disposição e muita sola de sapato. Mas igualmente compensadora e extremamente prazerosa, com a descoberta de várias fazendas, a estrada de ferro que liga Barra Mansa ao porto de Angra, cachoeiras de águas geladas e cristalinas e rios sinuosos, com corredeiras e quedas, ideais para a prática de rafting.
Como já haviamos feito uma pesquisa anterior e feito contato por telefone, optamos por nos hospedar na Pousada Recanto (55 24 3334 1103). A pousada, como quase todo o povoado é, está localizada numa pequena encosta, e teve a sua construção realizada em degraus, com vários chalézinhos morro acima. Ficamos com o chalé de nº 2, o que foi muito bom, já que nos dava uma linda vista de todo o vale sem termos que subir tantos degraus de escada a ponto de perder o fôlego. A pousada está longe de ser uma pousada de nível internacional, pecando justamente onde poderia ganhar muitos pontos: na familiaridade e improvisação. Sempre acho agradável a sensação de estar hospedada na casa de amigos. Desde que eu não esteja incomodando esses "amigos" e que tudo esteja muito bem arrumado, obrigada. Mas, por ser uma pousada familiar, onde quem cuida são os donos, o serviço é lento e meio difícil. O cuidado com o chalé também não é dos melhores, mas um telefonema resolveu tudo e toalhas foram trocadas, quarto varrido e a vida continuou fluindo feliz. O café da manhã, no dia seguinte, foi farto e bem servido, de sabores honestos e caseiros. Valeu a pena. E devidamente incluido na diária de R$ 60,00 (casal).
A verdade é que o povoado definitivamente não está icluído no circuito turístico do estado, tendo uma infraestrutura muito precária para atender visitantes. As pousadas são bastante simples (e baratas, claro, o que não deixa de ser um ponto positivo) e restaurantes são praticamente inexistentes. Você encontra padarias não muito bonitas, mas com produtos de boa qualidade, como pães de queijo e doces da região. Tudo a preços módicos. Demos a sorte, na noite de chegada, de encontrar o Parador Santana, um restaurantezinho muito aconchegante e charmoso, aberto por uma carioca que tem uma casa na região e que planeja abrir em breve uma boa pousada voltada para o ecoturismo. O restaurante fica localizado bem no centro de Lídice, em frente ao monumento à Fênix. Não tem erro. Lá pudemos desfrutar de uma boa refeição: sopa de abóbora (R$4,00), suco de pitanga (R$1,50) e "vovó gelada", uma sobremesa feita de bolo de chocolate e sorvete de nozes (R$2,50). Os 10% tradicionais de serviço não foram cobrados mas achamos justo e merecido pagar a gorjeta. O retaurante, no entanto, é o único do gênero e, provavelmente, o único que você vai conseguir pegar aberto à noite.
O dia 1º de maio amanheceu com um céu espetacularmente azul e limpo. A temperatura estava agradável e convidativa a caminhadas exploratórias. Depois de forrar nossos estômagos, com uma garrafinha de água no bolso, máquinas fotográficas e muita disposição, partimos para a estação de trem de Lídice, estação final do antigo trem turístico que partia de Angra, passando por dentro da mata atlântica e subindo as montanhas da região. Hoje não existem mais trens de passageiros. Os que passam por lá o fazem uma vez ao dia, carregados de minérios, fazendo o trajeto Angra - Barra Mansa - Angra. A pequeníssima quantidade de tráfego, faz da linha férrea um lugar tranqüilo para se caminhar e um óbvio convite à "aventura segura". Como não poderia deixar de ser, nos atiramos aos trilhos, subindo em direção a Rio Claro.
O que pudemos ver foram inúmeros morros e colinas, gado pastando equilibrado nas encostas, casebres à distância, pessoas caminhando depois da igreja, muito verde, e o rio correndo incansável, paralelo à linha do trem, ora largo e caldaloso, ora sereno e tranqüilo, murmurando entre pedras.
O caminho foi quase todo percorrido em grande paz. Mas sabíamos que o trem do dia ainda não tinha passado e ficamos durante um bom tempo com as orelhas em pé, tentando advinhar o momento certo de sair da estrada e abrir caminho para o comboio. Não foi necessário tanto cuidado. É simplesmente impossível ignorar o barulho da locomotiva, beirando o ensurdecedor à medida em que se aproxima, e foi fácil percebermos a sua chegada. Fácil e surpreendentemente assustador. Estando na beira da linha do trem, temos a sensação da chegada de um enorme dragão, barulhento, colocando fogo pelas ventas, pronto para te engolir. Nos encolhemos o máximo que pudemos e ficamos estupefatos, seres urbanos que somos, com a possibilidade de estar ali, com todo aquele verde, sem proibições, sem fronteiras, acenando ao maquinista, felizes de existir. Imperdível.
Resolvemos continuar caminhando em frente até a próxima estação ou à possibilidade de encontrar a rodovia. Assim poderíamos ter mais um bom tempo de explorações, além de podermos pegar um ônibus para retornar. A linha do trem continua encosta afora mas chega um momento em que tem que atravessa o rio. E isso é feito através de uma ponte, claro. Mas, o que eu não sabia ou nunca tinha parado pra pensar, é que pontes feitas para trens são muito diferentes das feitas para pessoas caminharem. Ou seja, não são inteiriças, sendo construídas de ripas espaçadas de madeira, o suficiente apenas para a colocação do trilho e dos dormentes. Você caminha e vai vendo o rio passando lá embaixo entre uma ripa e outra de madeira. E, segundo meu Namorado Gringo, essa pontezinha não passava disso mesmo, uma pontezinha inofensiva de pouco mais de dez passos. Mas pra mim, bem, pra mim essa ponte era a ponte do inferno que me levaria direto a uma morte inclemente, sendo tragada pelo rio que corria furiosamente por baixo dos meus pés. Inútil e dispensável dizer que entrei em pânico. NG teve que me dar a mão e eu, entre as lágrimas que brotavam espontaneamente, olhava pra ele (e só pra ele) em desespero, num pedido suplicante de "não me abandone!!". Enfim, assim consegui ultrapassar, entre alivio e satisfação, esse primeiro grande obstáculo do percurso. Mal sabia que o pior ainda estava por vir. Mais ou menos 40 minutos depois dessa primeira pontezinha eu encontrei o que era uma ponte de verdade, dessas pontes de filme, grande, com estrutura de metal e que, para meu total desespero, era muito mais alta e feita exatamente com o mesmo tipo de ripas de madeira. A verdade é que só não desisti e voltei porque eu já sabia da existência da primeira ponte, o que me deixava sem muitas escolhas. Cheguei a pensar em descer a encosta e atravessar o rio a nado, mas depois de uma avaliação um pouco mais racional da situação, achei que seria mais perigoso atravessar as correntezas de um rio que eu não conhecia e nem imaginava a profundidade, do que caminhar por sobre uma ponte construída para agüentar uma locomotiva. Segui adiante mas, meus amigos, medo não é racional e o pânico bateu sem pedir licença. E o trajeto, que poderia ser feito em um minutinho, demorou 10 vezes mais. Ou 100 vezes mais. Impossível dizer, aliás, já que perdi completamente a noção de tempo. A ponte nunca acabava e o tempo nunca passava. Mas, felizmente, acabou. E relaxei, caindo no pranto, sentada no trilho do trem, com o carinho e a paciência do meu Namorado Gringo que, independente do estado de petição de miséria em que eu me encontrava, adorou a ponte, o visual, o rio passando lá embaixo, a possibilidade de ver a água correndo por baixo dos seus pés, a beleza da costrução em madeira e ferro. Duas formas opostas de ver uma ponte: caminho para o inferno ou para o paraíso?
Bem, no meu caso o inferno foi o caminho e não o destino final. Esse foi deliciosamente compensador, tendo valido a pena até os desesperos momentâneos passados. Todo o passeio foi permeado por uma atmosfera de calma e paz, com céu cristalino e colinas de um verde tranqüilizador. Em companhia de um amigo canino feito pelo caminho, chegamos a uma estrada de terra que ligava a rodovia à uma localidade chamada Santana, cruzando a linha do trem. Ali nos despedimos da estrada de ferro, com um gostinho de quero mais, uma vontade de continuar caminhando indefinidamente pelos trilhos, de relaxar ao sabor da aventura sem se preocupar pra onde se está indo, mas com a certeza absoluta de chegar a algum lugar, pois o trem sempre vai pra algum lugar.
Chegando na estrada rodoviária paramos pra esperar o ônibus que iria de Rio Claro a Lídice. Mas um morador local nos ofereceu uma carona e os mais ou menos 7 km percorridos a pé pela linha do trem, em aproximadamente 3 horas, se transformaram em míseros 10 minutos de carro. O que não deixou de ser um alívio, depois de tantas emoções e de tanto sol na cabeça. Saltamos, entre sinceros agradecimentos, na padaria existente em frente à pousada, demos uma enganada no estômago e, após pegar nossa parca e enconômica bagagem na pousada, caminhamos até o centro de Lídice para pegar o ônibus de volta para Angra. A volta foi sonolenta e calorenta, mas com emoções tão fortes quanto a ida. Os motoristas devem passar por um mesmo processo de treinamento, que os ensina bem direitinho como assustar os incautos e desprevenidos passageiros.
Em Angra compramos nossas passagens, demos uma fugida ao MaxBurger novamente (em time que está ganhando não se mexe) e voltamos para o Rio, dessa vez em um ônibus sem ar condicionado. E, claro, depois de um final de semana prolongado, pegamos um bom de um engarrafamento na estrada. Mas nada que abalasse nossos humores. Nada que fizesse estragar nossas lembranças. Nada que apagasse nossos sorrisos de exploradores bem sucedidos, felizes e tranqüilos.