quarta-feira, junho 08, 2005

farol e ovo-frito

Hoje lembrava com mamãe da minha primeira bicicleta, comprada pelo meu avô. O mesmo avô professor, músico, botafoguense, de modos e educação impecáveis, de fala mansa e gostosa. Avô que me ensinou a ler e a andar de bicicleta aos 4 anos. E que tinha um carinho e um cuidado que nunca mais senti após a sua morte. "Dedé, vamos estudar", dizia.
Ele tinha umas coisas engraçadas. Foi professor a sua vida inteira, era um homem dos livros e do violão. Tocava um chorinho como poucos, tendo sido integrante da banda que acompanhava Carmem Miranda. Mas aos sessenta e poucos anos (nossa, e eu achava que ele era um velhinho...), já aposentado dos livros e apenas amigo do violão, passou a ser um homem de chave de fenda na mão e durepóxi. Durepóxi, pra quem não conhece, é uma massinha acinzentada que pode ser moldada e fixada em qualquer coisa que mereça remendo. Ela seca, endurece e, voilá!, é a solução pra todos os seus problemas! Pelo menos era assim que ele pensava. Tascava durepóxi em mesa, cadeira, azulejo, violão (sim, até no violão dele, que temos até hoje, feito pelo próprio Di Giorgio sob encomenda, nos idos de 1915), porta, janela e até em bicicleta.
Aliás, foi na bicicleta que o assunto começou. Lembrava com mamãe dessa bicicletinha, minúscula, azul e branca, que meu avô me deu e enfeitou com fitas caídas do guidão, colocou buzina (que eu simplesmente amava) e um ovo-frito na frente. Epa, um ovo-frito?! Bem, era o que eu achava na época. Vovô, com sua paixão pelo durepóxi, colocou um farol amarelo na bicicleta fixado, naturalmente, com esse milagroso material. Mas, como era um experimentador na arte de colocar faróis, espalhou o durepóxi todo em volta do farol amarelo. Depois pintou de branco. Tinhamos então um farol/ovo-frito bem na frente da bicicleta. No auge dos meus 4 anos eu pensava: que legal, vovô fez um ovo!! A verdade é que só descobri que era um farol através de minhas lembranças, muitos anos depois. Bem depois da sua morte e do sumiço da bicicletinha.
Me faz refletir em quantas e quantas vezes nos enganamos na vida. Às vezes com coisas tão absurdas como ver um ovo-frito no lugar de um farol. Quantos sentimentos, quantas certezas, quantos conhecimentos caem por terra olhados por outro ângulo, com outra experiência. Quantas risadas damos de nós mesmos quando conseguimos enxergar um pouco mais. Finalmente ficam só os sentimentos mais íntimos, mais puros, como o amor que eu sentia (e sinto até hoje) por esse avô tão cheio de ternura. Fica, também, a certeza de que muita coisa ainda vai ser descoberta, que o tempo ensina, muda, transforma. E que a partir desse aprendizado passamos a ter o poder da escolha.
Escolho então lembrar que eu tive uma bicicleta com um ovo-frito. É mais divertido. É uma lembrança que existe dentro de mim, não foi inventada. É a maneira menina de ver o farol. Escolho manter viva a menina, apesar de tanta vida vivida, tanta vida sofrida. E, além disso, todo mundo já teve uma bicicleta com farol. Mas com ovo-frito, duvido.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Me emocionei com este texto. Que lindo...
Bem, eu não tive uma bicicleta com ovo frito, nem com farol, mas tive um vovô, tive vários vovôs que, se eu fosse aqui contar todas e tantas lembranças, poderia passar horas...
Hoje não tenho mais o meu vovô do peito, mas dele, carrego muitas coisas comigo, afinal, quem me ensinou a tocar a velha e boa viola, foram suas mãos, que, pacientemente, segurava as minhas que mal tinham força de apertar uma corda...
Ele se foi a tempo de me ver tocar a primeira música inteira... :(

Bem, tô com saudades de vc.

Ah, e meu violão é Di giorgio tbm. :)

bjs.

11:29 AM  

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