terça-feira, maio 17, 2005

apenas uma história

O sol estava morno, apesar de estarmos no auge do verão. A temperatura agradável e cômoda. Já passavam, possivelmente, das quatro da tarde. Não tinha relógio, e nem precisava. A hora era a última coisa que me preocupava naquele momento.
A praça estava cheia. Muitas pessoas conversando, algumas em pé, outras sentadas na grama. Várias famílias tinham estendido lençõis e estavam deitadas, aproveitando a sombra das árvores e a brisa fresca que soprava. Eu caminhava com desenvoltura entre o povo, com um misto de satisfação e orgulho. Via os rostos, me reconhecia na multidão, Fazia parte de alguma coisa.
Meu irmão, minha mãe, minha sobrinha também estavam lá, perdidos no meio de todos. Mas não precisava encontrá-los. Quando quiséssemos, com certeza nos veríamos. Até meu antigo amor estava, com sua nova família, fazendo parte de tudo aquilo. Mas nem isso me incomodava.
Ouvia ao longe o violão dele. Violão gostoso do meu querido amigo Dimitri. Eu ia me aproximando e ouvindo com mais clareza seus acordes, sua voz melodiosa e confortável. Começava a ver, entre as cabeças, sua figura marcante em cima do palco improvisado. Na verdade fazia um pequeno show, de última hora, por amor à arte e ao povo, sentado em um banquinho numa varanda de uma grande casa, cedida por um morador patriota. Mas, apesar de tanto empenho, o povo estava disperso, falava, e não prestava muita atenção a tudo aquilo.
Ele de longe me viu. E me surpreendeu falando alto de lá de cima:
- E agora minha querida amiga Fernanda canta comigo essa linda canção!!
E apontou pra mim no meio da multidão. Por um momento me senti nua, descoberta. Mas feliz por ter sido vista, notada por ele. Eu o amava e nem sabia. Não me dava conta do óbvio.
Comecei a cantar ainda no meio de todos, enquanto caminhava até o palco. O povo abria passagem e me olhava, admirado. Até eu me admirava. Aquela voz não parecia minha. Tão forte, segura, doce. E como era bom cantar assim!!
Subi ao palco e cantei a música até o fim, contando com o sorriso cúmplice e terno de Dimitri. Ele fazia a segunda voz e aumentava a miha força, a minha segurança.
Esse homem/menino de mil talentos, mil surpresas, mil idéias, me encantava. Eu confiava nas suas palavras e sorrisos. Me reconhecia nos seus pensamentos. Me via espelhada na sua imagem e no seu modo de ser. Tínhamos uma ligação forte já, um laço profundo de amizade. E nesse dia olhei pra ele como se fosse a primeira vez. Lembrei do sentimento de déjà vu que eu tinha experimentado em nossa primeira conversa, falando de arte. Vi o homem delicado e sensível, que muitos, quase ninguém aliás, conseguia compreender. E eu podia. E ele a mim.
O público aplaudiu nossa canção. Mas nesse momento já não estávamos mais ali. Tudo parecia longe, diferente. Dimitri me olhava e me sorria com uma ternura muito própria, muito singular. Sentia a sua cumplicidade.
Nossa maratona de eventos e vigília já durava mais de 24 horas. e apesar de sermos da mesma natureza insône e noturna, de nos alimentarmos basicamente de palavras e idéias, estávamos exaustos. As pessoas se dispersavam e já haviam perdido o interesse em nós. Deitamos no chão da varanda, de pedra fresca e ficamos por um bom tempo virados um de frente para o outro nos olhando, nos medindo, nos conhecendo de uma nova maneira. Dimitri acariciou lentamente meu rosto, meus cabelos esvoaçadaos pela brisa e me deu o beijo mais longo e carinhoso de toda a minha vida. E me disse com aquele sorriso luminoso:
- Como alguém pode beijar e cantar assim!!
Adormecemos assim, deitados no chão, sem acessórios, sem adereços. Só nós e nossos braços. Só a brisa, o céu e nós. A vida simplificada ao extremo. O amor e só.