segunda-feira, janeiro 30, 2006

rio 40 graus (publicado originalmente no "Trompe l`oeil... parece aquele, mas não é")

O clima desse Rio de Janeiro é imoral. Esse brilho todo, tanta luminosidade, esse calor que faz a gente tirar a roupa, cada vez mais, pernas de fora, seios à mostra. Tudo sem culpas, tudo legitimado pela impossibilidade total de viver com mais alguns centímetros de tecido nesse calor desumano.

Não adianta querer tampar o sol com a peneira. E às 2 da tarde, nem com guarda-sol é possível uma sombrinha satisfatória, quanto mais usando uma peneirinha, que aliás ficaria muito melhor se servisse pra coar um suquinho de abacaxi com hortelã ou, ainda, pra tirar os carocinhos de um suco de limão para uma caipirinha. Até porque, sem esses pequenos e indispensáveis luxos da vida carioca, diria que esse calor senegalesco (amo essa expressão, já secular, que me soa tão poética quanto eloqüente, a um só tempo) seria de matar. Literalmente. Que sem uma caipirinha, um suquinho, uma cervejinha, uma prainha, uns beijinhos, um amorzinho, ninguém pode passar um verão. Pelo menos um verão decente. Ou indecente, dependendo da altura da saia, claro.

O que eu quero dizer é que fica sempre parecendo injusto alguém trabalhar em dias com temperatura na casa dos 40, com um céu tão azul, uma luz tão branca e um calor tão vermelho. Como podemos nos concentrar em tarefas corriqueiras, como pagar contas, cuidar de burocracias mil, com esse ar de férias, com essa alegria flutuando pelas nossas vistas, com tantos sorrisos e bronzeados sendo desfilados pela rua? Ficamos sempre com aquela sensação que falta um evento de celebração no dia. O evento de fechamento, de ode a tanta beleza, tanta natureza, tanta falta de respeito por você trabalhador. Porque é uma puta falta de respeito fazer sua imaginação trabalhar, pensando na areia, em bundas, em cerveja na praia. E depois do sol se pôr, pensar em todos os bares cheios, tantas pessoas bem sucedidas, tantos chopps e sorrisos abertos e amigos, tantos abraços, tantos corpos dourados, suavemente perfumados pela maresia e pelo calor dessa cidade irresponsável.

A verdade é que não temos muito o que fazer. Uma boa opção seria a mudança definitiva, dos mais descontentes, para a Sibéria ou para o Alasca, quem sabe. Mas para a maioria esmagadora de nós, que reclama pelo habito de reclamar mesmo, porque não consegue ficar numa fila de banco se falar mal do governo ou do tempo, quer dizer, das coisas que, teoricamente, não nos dizem respeito, que estão fora da nossa jurisdição, fora do nosso poder de voto, para nós, reles mortais, resta aceitar a benção e maldição de viver “num país tropical, abençoado por deus e bonito por natureza”. Resta aceitar que, para se poder ter uns momentos de prazer extremo no fim de semana, ou ainda, uma vez por mês, tem-se que abrir mão de algumas coisas, como conseguir usar roupas normalmente sem sofrer, poder ser atendido por funcionários públicos mais ou menos suados sem ser xingado, pegar um ônibus que não te jogue para-brisa à frente, enquanto sua coxa e seu braço colam, suados, no assento impermeável do coletivo. É assim. Em compensação você pode tomar chopp à noite, na Cobal do Humaitá, por exemplo, em qualquer dia da semana, durante todo o verão, e encontrar milhares de pessoas, conversar com pelo menos meia dúzia e, se você for do time dos solteiros, a possibilidade de conseguir pelo menos um amor de verão é de 557%, o que é um prognóstico pra lá de excelente.

Partindo daí talvez possamos entender alguns pontos da vida carioca. Podemos notadamente perceber que estamos tratando de um povo muito social. Mas, que os desavisados não se enganem, estamos falando de uma sociabilidade da porta de casa pra fora. Não que o carioca não receba em casa. Ele faz isso sim de vez enquando. E quando o faz é geralmente com louvor. Mas o hábito reinante são os encontros sociais fora de casa, num espaço democrático, num espaço comum a todos os envolvidos. Em conversa recente com meu Namorado Gringo (que além de gringo e apaixonado pelo Rio é um agudo observador dos hábitos e da cultura) estávamos justamente falando sobre esse tipo de comportamento. É claro, nisso concordamos, que é muito mais fácil ser social em um ambiente externo, fora do seu habitat, longe dos seus domínios pessoais e íntimos. Mas nossa concordância termina aí. NG aposta que é justamente por causa dessa facilidade em “afastar” as intimidades que o carioca elegeu o ambiente externo como o habitat para encontros sociais. Aliado a isso, estaria a nossa eterna crise econômica. Muito mais fácil encontrar com amigos num bar, por exemplo, e a conta ser rachada, do que receber em casa, bancando um jantar, bebidas, etc.

É aí que eu discordo. Primeiro porque sou carioca, nascida e criada nessa cidade indecente porém maravilhosa, me dando uma possibilidade de falar do lado de dentro da questão. Segundo porque também sou uma boa observadora social, tendo anos de estrada nesse quesito aqui no Rio de Janeiro. E posso dizer que o carioca é um cara geralmente gentil, solidário, amigo. Logo, apesar dessa aparente frieza nos relacionamentos, com essa vida social efetivamente externa, afastando as pessoas do que chamariamos de um convívio realmente intimo, posso afirmar com toda a certeza que me é permitida na alma, que os encontros são em lugares públicos, geralmente ao ar livre, simplesmente porque é impossível permanecer em um ambiente fechado com uma temperatura tão elevada. Nós, cariocas da alma e da gema, nos coçamos, ficamos impacientes, deixamos escorrer um fio de baba do canto da boca, se precisamos ficar confinados entre quatro paredes durante o verão. Salvo exceções, (como a célebre cochilada depois da praia, metido num quarto com ar condicionado polar) o carioca vai sempre preferir o ar livre, janelas abertas, chopp gelado, falatório. E ainda a possibilidade de sempre poder admirar uma perna, um sorriso, um bronzeado. Tanto melhor se não precisar lavar a louça do jantar e a conta ainda for rachada!!